sexta-feira

"Não Lugares" de Marc Augé

· “desvio do olhar”, uma definição de sobremodernidade -na obra "Non Lieux" de Marc Augé.

«Existem espaços nos quais o indivíduo se sente espectador sem, verdadeiramente, se importar com a natureza do espectáculo». Chama-se desvio do olhar quando se desqualifica um lugar e se esvazia de todo o conteúdo, quando se destaca uma posição, uma “postura” e o lugar fica em segundo plano. É uma forma sobremoderna de solidão. Num «mundo onde se nasce na clínica e morre no hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou inumanas, os locais de trânsito e as ocupações provisórias..

O termo “espaço” está muito vulgarizado na linguagem actual- está ligado ao léxico do consumo referindo-se à «conquista espacial, em termos mais funcionais que líricos» (e.g. «espaços de lazer», «espaços de jogos»). Deste modo desqualificou-se na medida em que a experiência de facto é uma sombra do que é prometido, «os consumidores de espaço contemporâneo são acima de tudo solicitados a contentar-se com palavras». No fundo tudo o que seja promovido pelos círculos de consumo corre o risco de criar expectativas no “consumidor” que não estão tão patentes no “produto”. A palavra em si é o bem de consumo.

«A imaginação de todos aqueles que nunca foram a Taiti ou Marraqueche dá livre curso às suas fantasias ao simples som ou leitura desses nomes». Há no imaginário comum um mapa-mundo de lugares que passam de boca em boca sem que ninguém conheça de facto alguma coisa.

  • nome como rótulo -hiato semântico. Se um lugar ganha um nome por um facto histórico (“lieu dit”) e, a partir daí, a sua evidência física e real é facilmente invocada por um simples nome, a apropriação do seu conteúdo é ilusória- ainda mais quando a síntese de um local ( real e complexo) numa parábola já é por si redutora.

Mas nós precisamos desses nomes para nos simplificar o dia a dia. O problema é que a sobremodernidade provoca uma utilização abusiva desses nomes e o facto de um lugar ter nome passa a ser um factor de negação do lugar. «Esses nomes dão lugar a que nos lugares se introduza o não-lugar; transformam-nos em passagens». Os rótulos nas auto-estradas -Coimbra “Cidade Museu”-pode ser verdade mas -Cidade Universitária” ou “Cidade Bucólica” também. Há uma falsa sensação de aproximação ao local. Presume-se que «o viajante de passagem não está em medida de poder ver o ponto de interesse assinalado, e cujo o prazer, nessas condições, depende do simples conhecimento da sua proximidade», «fica, de certo modo, dispensado de parar e até de olhar.»

Da qualidade da conexão “lugar---espaço” é que se afere das suas características como lugar antropológico, ou seja a qualidade de lugar antropológico está nas possíveis interpretações que o sujeito lhe pode dar sem contudo serem concretizadas. «Na noção de lugar antropológico nós incluímos a possibilidade dos percursos que aí se efectuam, dos discursos que aí são tidos, e na linguagem que o caracteriza.». Um lugar antropológico por excelência é aquele que permite uma cognição mais directa pelo observador.

  • percepção primordial do lugar- «toda a narrativa regressa à infância.» A narrativa é bem lida quando é apropriada pelo leitor através do reconhecimento de “signos familiares”.

Um lugar onde essa conexão se deteriora torna-se opaco ao ponto de reflectir não mais do que a própria imagem e posição do observador. ·-forma sobremoderna de solidão.

Por ser uma característica da relação entre lugar e espaço e não inerente a nenhum dos dois, num lugar antropológico pode-se introduzir o não lugar e vice-versa. -Num supermercado -típico não-lugar [1] -a ânsia de cobrir uma necessidade para a qual tem que se cumprir certos preceitos: arranjar um lugar para estacionar, trazer a moeda para o carrinho, deixar a mochila á entrada, seguir uma certa ordem nos artigos para não se perder tempo ás voltas e, a prova final de inocência, apresentar na caixa um cartão de débito com a sua identificação gravada para se poder seguir no sentido inverso com as compras para o carro e para casa.

Por absurdo -alguém entra num supermercado seduzido pelas luzes e pelas imagens POP dos artigos repetitivamente expostos pelos corredores e observa os comportamentos mecanizados dos clientes empurrando os carrinhos de compras, então estará a interagir com o lugar e com as suas memórias. ·-percepção primordial do lugar.

O lugar antropológico deixa mais espaço para acontecer vida.

Por existir um padrão nos comportamentos do não-lugar -o utente sabe que a sua missão será bem sucedida quando ele chega ao fim sem ser identificado. Tudo estará bem enquanto for seguindo as “recomendações, «não tirar fotografias», «cartão mal introduzido», «velocidade máxima 50Km/h», «fila única», «conserve o bilhete». -mensagens vindas de uma entidade, mais ou menos, abstracta, dirigidas indiferentemente a todo o indivíduo- «obrigado pela sua preferência», «Boa Páscoa», «estamos a trabalhar por si»- quem? por mim? é comigo que estão a falar?- Transformei-me no “homem médio” que esta conversa de surdos fabrica e enquanto me mantiver atrás deste disfarce de “homem médio” pelo menos não serei identificado.

Como se se tratasse de um buraco negro, o não-lugar, suga um pouco da vida do utente, que é conduzido através de uma «paisagem texto que se lhe dirige», para a realização de uma tarefa que lhe é urgente. Na realidade os não-lugares tipo, são espaços onde se contratualizam obrigações. O cliente tem uma necessidade e a entidade oferece a facilidade de a cumprir sob a condição da prescrição de um contracto. Isso é por demais evidente em necessidades como de deslocação, de bens de consumo e recreação, mas mesmo na cultura e no turismo aparecem entidades a oferecer serviços com “tudo incluído. -como se a experiência retirada do “encontro” com um lugar pudesse ser incluída num pacote. «Paris num tour» -os operadores turísticos debitam informação numa lenga lenga decorada e repetida vezes sem conta para os magotes de turistas absortos e ordeiramente sentados nas cadeiras de autocarro. «Essa pluralidade de lugares, o excesso que impõe ao olhar e à descrição (como ver tudo? Como dizer tudo?)», «vistas parciais, “instantâneos”, adicionados, sem qualquer ordem, na memória e literalmente recompostos na narrativa que os descreve ou no encadeamento dos diapositivos cujo comentário impõe aos que o rodeiam. A viagem (aquela que o etnólogo desconfia ao ponto de a “odiar) constrói uma relação fictícia entre o olhar e a paisagem.»

[1] -sempre que se fala em não-lugar está-se a referir à qualidade antropológica do lugar e por isso é: não-lugar-antropológico.