segunda-feira

Paris


I

Aquilo que procuramos de certeza (mesmo que inconscientemente) quando estamos em Paris – o período de ouro, de todas as inovações permitidas pela revolução industrial; os caminhos de ferro e as suas majestosas estações, a arquitectura de ferro nas suas mais arrojadas manifestações, a “fada electricidade” iluminando as ruas e edifícios, tudo isto reunido numa cidade sabiamente preparada pelos urbanistas de Haussman para receber o mundo moderno nascido da revolução industrial.
Todo este Paris fervilhante, já foi moderno, depois demodée e pós-moderno e agora já não passa de uma historia – uma historia para debitar às hordas de turistas que se expectam defronte aos magníficos vestígios esperando ressentir alguma vibração dessa “belle époque”.
Fica o resto para contar; são as ruas e avenidas entregues aos automóveis, as lojas de souvenirs, os restaurantes Doner Kebab, os cabeleireiros da moda para pretos, as lojas de roupa branchée na crista da sub-cultura urbana, punk/pós-moderna, os túneis de metro a cheirar a mijo, os milhares de quilómetros quadrados de graffitis os grandes marchées des puces, as passagens superiores, os vãos de viaduto e das circulares, as instalações industriais decadentes abandonadas e acima de tudo as pessoas de Paris, os seus interpretes.


II

Como é viver numa grande cidade? Desconcertante. A primeira coisa a dizer é que há muita gente. Sim porque é isso mesmo que significa a cidade ser grande. Mas esta impressão de multidão ainda é acentuada pela sua mobilidade. Há gente que vem de todos os lados e vai para todas as direcções a todas as horas. Imaginando a situação insólita de apanharmos um metro ás 5:30 da madrugada na estação Télégraphe (uma entre as mais de 250 ) é muito provável que ainda assim partilhemos o metro com 50 pessoas – mas quem são estas pessoas, de onde vêem? o que as move? se eu estivesse tranquilo na minha cama elas estariam aqui?
Ao princípio é difícil conceber esta nova realidade: é como os jogos de arcade com munições infinitas em que podemos estar um dia a atirar tartes de maça que nem por isso as tartes de maça parecem acabar.
Psicologicamente altera comportamentos: é difícil ficar muito tempo no mesmo sítio não se dê o caso de vir um mar de gente que nos leve. Se fico algum tempo no mesmo sítio tenho a sensação de já ter sido visto por tantas pessoas nas mesmas coordenadas que só pode significar que já estou ali há tempo demais.
A segunda coisa a dizer e contrariamente ao que se possa pensar, esta multidão não é toda igual. Há pessoas de todas as formas e feitios: árabes, pretos, franceses, europeus de leste, japoneses, europeus do norte e do sul, chineses, ciganos, curdos, indianos, judeus, sul americanos e todas as misturas possíveis entre eles.


III

A terceira coisa a dizer é que no meio de tanta gente, desfila muita miséria social. Genericamente descritos como pessoas que têm o habito de se deitar no chão da rua, cheirar mal e têm o poder de petrificar o coração e subtrair o dinheiro dos outros. Estes habitantes têm estilos de vida mais organizados do que possa parecer á primeira vista, são marginais profissionais os que verdadeiramente subsistem desta forma.
É a arte da penitência que consiste em tentar comover o espectador apresentando-se numa posição de inferioridade ou de verdadeira decadência ou prestando um qualquer pseudo-serviço.
Em todas estas formas marginais de subsistência a mensagem a transmitir é «eu mereço o seu dinheiro porque...»:
- «...sei fazer isto» é a mais parecida com uma verdadeira profissão. O sujeito esforça-se por agradar ao espectador de uma forma minimamente convincente, como: tocar um instrumento, fazer uma demonstração de habilidade, uma performance, etc.
- «... sou útil» o sujeito presta um pseudo-serviço que seja comprometedor, como: arrumar carros, lavar vidros, vender pensos-rápidos, etc.
- «...a minha vida é assim» o sujeito apresenta-se e conta a história da sua vida com o máximo de pormenores comoventes, como: a dificuldade de encontrar um emprego, a idade dos filhos e os problemas na família.
- «...eu sou assim» o sujeito exibe a sua deficiência física, como: uma amputação, uma corcunda, etc.
- «...sim» o sujeito coloca-se de joelhos e cabeça baixa, ou noutra posição de penitência, num local de grande afluência ou espera simplesmente deitado com um prato para as moedas.
- «...consegui tira-lo» mais conhecido por pickpocket. O sujeito subtrai fisicamente os valores ao concidadão, sem esperar pela aprovação deste, fugindo de seguida. É considerado crime, e como tal só os jovens mais inconscientes e em boas condições físicas, para poder fugir, é que seguem por esta via.

Na realidade eles desempenham um papel na sociedade capitalista: todo o cidadão que tenha um emprego alienante e perspectivas sombrias de uma vida menos escravizante, pode-se recordar diariamente que ainda assim é um privilegiado na pirâmide social. Corolário de resto triste.