domingo

Paris - mobilidade


As avenidas novas, os boulevards de Haussman agitados pelo movimento de carruagens e pessoas marcando o ritmo cardíaco da cidade – a vertigem moderna de Baudelaire criada pelo “fluxo e refluxo do movimento”, na multidão.

Esta ideia de modernidade está ultrapassada – acontece que a industria automóvel evoluiu muito desde o tempo de Baudelaire e nós, humanos contamos com as mesmas pernas e os mesmos reflexos – não nos podemos, como Baudelaire, infiltrar no trânsito. Quem procurar esse confronto vai saboreá-lo no hospital, com sorte. Vive-se hoje nas avenidas um “apartheid” e os pretos são os peões.

Primeiro foi necessário regular o trânsito: afixaram-se instruções em chapas, marcou-se no chão as faixas – os 30 metros deixados por Haussman davam para 6 faixas ou mais – assim podem vir mais carros. Os boulevards travestiram-se rapidamente em troços de auto-estrada com carros cada vez mais potentes a acelerar loucamente até ao próximo sinal vermelho. Para circular na cidade o peão tem de ser oportunista e esperar que mude a direcção do trânsito. Generosamente alguns semáforos têm um botão para pedir permissão de passagem. Todos os dias são frustrantes para um peão. E o que faz o peão no fim de mais um dia frustrante? Como é óbvio vai se meter no primeiro buraco que encontrar. É nesta altura que o peão sai do reino dos carros para entrar no seu…mas para castigo cheira a mijo. As centenas de quilómetros de túneis escavados com a intenção de dar ao peão alguma liberdade de movimentos são na realidade a sua prisão, o seu último reduto, a sua trincheira na guerra perdida contra o automóvel.

O automóvel não sabe utilizar a cidade é arrogante. Ocupa a parte principal da rua, é perigoso e intimida os outros utentes da rua, cria desconforto com a poluição aérea e sonora e para alem do mais nem sequer funciona: não é necessária uma ocasião especial para o trânsito estar estagnado.

Do ponto de vista civilizacional é irracional. É primitivo. A civilização existe de forma a agilizar procedimentos que num estado primário são muito penosos. É confortável beneficiar da vida em sociedade. Civilização é inteligência é eficiência e quanto mais inteligente é a civilização mais bem-estar traz às pessoas.

Se há uma quantidade absurda de itinerários coincidentes no tempo e no espaço porque havemos de os fazer, cada um por si, utilizando meios próprios?

Mas as pessoas continuam a usar o automóvel…quais as suas vantagens?

- é mais confortável.

- é mais asseado (se assim o quisermos).

- viajamos sozinhos – o que na sociedade actual é visto como uma vantagem.

- vamos directamente até ao local de destino sem mudar de automóvel e sem andar muito a pé (depende se temos estacionamento). Num trajecto de metro temos frequentemente de mudar de estação e nem sempre o metro chega exactamente onde queremos o que implica andar a pé uma média de 10min. por viagem.

- podemos transportar facilmente mais bagagem.

Para comparação, as vantagens do metro:

- é mais barato: se tivermos o passe é quase de borla. O automóvel para começar é um grande investimento, depois a manutenção, os seguros, os imponderáveis, o combustível e o parqueamento que é muito caro no centro. (esta vantagem não é sensível para quem tudo isto somado não deixa de ser uma quantia irrisória)

- é mais rápido – especialmente se o transito continuar entupido como em Paris e noutras grandes cidades.

- é mais saudável – especialmente para quem stressa ao volante nas situações de para arranca.

- é mais prático – não estamos condicionados ao local onde deixamos o carro. Podemos chegar numa paragem e partir noutra.

- no metro não conduzimos, podemos aproveitar o tempo como quisermos: ler é o mais popular, podemos tocar musica e receber dinheiro por isso, ou podemos escrever textos idiotas.

Considerando que a rede autónoma de transportes de Paris (RATP) é a resposta às necessidades de deslocação dos parisienses e que tão grande percentagem destes se recusa a utilizá-la devemos questionar a sua validade?

Para bem de quem vive e respira em Paris, sim por favor.

O exercício necessário é anular algumas vantagens da escolha do automóvel por valorização do metro.

As novas gerações de metro, em Estrasburgo, no Porto e a extensão de novas linhas na margem sul de Paris (para citar os exemplos que sei de cor), todos eles são metros de superfície e não subterrâneos. Isso corresponde á correcção de uma situação que tinha já demonstrado ser deficiente:

- o uso regular do metro subterrâneo é responsável por problemas mentais desde o típico stress a neuroses e depressões. Os próprios trabalhadores da RATP são disso testemunho. O Homem não se adapta à vida de toupeira.

- a construção e manutenção da rede de túneis é um encargo colossal e frustrado. Nem falo de redes mais antigas como a Parisiense - exemplos mais recentes são prova que as tentativas de “habitar” debaixo de terra são tristes, decadentes, desumanas.

- os centros urbanos desqualificados e banalizados pelo automóvel são ressuscitáveis apostando em maiores áreas pedonais alimentadas por estreitas faixas de transportes públicos.

As condições á superfície são naturalmente mais favoráveis e interessantes para o utilizador: o contacto com a cidade, os percursos simplificados e intuitivos.

Os trajectos e as velocidades atingidas pelo metro raramente justificam o seu enterro: excepção para os comboios de médio curso (RER no caso parisiense) que são rápidos, maiores e atravessam o centro com apenas 3 a 5 paragens –são um bom complemento para o caso das grandes metrópoles.

Se tivermos como bitola as ultimas gerações de transportes públicos e se assumirmos que este é o mínimo a esperar para o futuro pode-se considerar satisfatório o seu conforto. Há que nunca negligenciar aspectos logísticos como a regularidade, a comodidade no transfere e a integração e adequação dos percursos.

Mas para atingir um nível de oferta competitivo com o automóvel falta, no meu entender mais um passo -a especialização da oferta.

Assistimos recentemente ao migrar de alguma classe de condutores, que faziam o percurso Porto-Lisboa nos seus carros de alta cilindrada, para o serviço de alta velocidade da CP. Não me chocaria ver os solitários condutores de Mercedes numa carruagem especial com ficha tripla para os notebooks, televisão e assentos XXL – desde que isso os demovesse de tirar o carro da garagem.

É preciso um novo paradigma para o transporte público – basta de cheiro a urina e a suor, de percursos esdrúxulos, de acotovelamentos, de ruídos estridentes, de túneis e escuridão.